terça-feira, 8 de janeiro de 2013

RETOMADA

Desde que a quase dois anos, baixou em mim o espírito de Nero e toquei fogo em minha casa, nunca mais estive lá de verdade.
Quando voltei do hospital, quase todo o lixo já havia sido retirado. Sobraram os escombros, um ou outro objeto solto aqui e ali.
Não mexi em nada. Minha presença lá só se dava para cuidar de meus cachorros. Limpava a sujeira deles, mas o que havia sobrado dentro de casa, ficava por ali mesmo. Era claro, uma forma de não aceitação, de não querer ver.
Foi nesse período que conheci o"tragédia humana"(já falei dele em outro post). Gente boa, ele. Sozinho no mundo, tendo por companheira a bebida. Mas era e é um bom sujeito, de grande compreensão das filigranas humanas. Tornou-se um amigo e foi morar lá. Sua função era só a de cuidar dos cachorros e claro, manter a casa e o quintal em ordem. A primeira tarefa ele a cumpria direitinho, mas quanto ao resto, Senhor me acuda. Na maior parte do tempo eu continuava no meu processo de cegueira; só me importava o bem estar dos meus bichos. Mas em diversas ocasiões o esquadrão do lixo começou a me incomodar.
Eu conversava, pedia, dava ordens. Durante um dia era possível entrar na casa sem tropeçar em todo o tipo de sujeira ou cruzar com algum rato abusado.
Mas era realmente só umas poucas horas, logo depois o tsunami da sujidade voltava com toda a sua fúria. Lata de lixo era algo que ele não conhecia. Assim, num sofá, você encontrava, roupas limpas e sujas, restos de comidas, embalagens vazias, louças. Também sofria do distúrbio de acumulação. Não podia encontrar nada pelas ruas, o destino era minha casa. Sua paixão era por bicicletas. Havia de todo o tipo, cor, tamanho, tudo espalhado pelos cômodos.
Armários? Para que armário? Peça tão arcaica! Tão mais fácil jogar as coisas pelo chão. Pia. Outro artifício desnecessário. Torneira, só para enfeite. A cuba servia mesmo para depósito de restos de alimentos podres muitas vezes com colônia de férias de vermes. Mas os cachorros estavam bem e para mim só isso valia a pena. Eu não morava lá mesmo, ele que vivesse no lixo. Tinha tudo: comida, roupas, remédios, dinheiro, tv, computador, celular e sobretudo, afeto. Só que um dia acordei. Despertei para a vida que permaneceu em latência desde o surto e não gostei do que vi. A primeira percepção que tive foi de que aquela casa ainda era minha e que em nenhum momento eu a destruí por ódio. O que me levou a incendiá-la foram outros motivos. Bom, se a casa era minha, se havia despertado do meu sono de bela adormecida, então era a hora de fechar as contas com o "tragédia humana" e tomar de volta as rédeas de minha vida e esse processo incluia a retomada da casa. Não foi um caso pensado, uma decisão refletida. Veio num impulso, ou melhor, num rato que banqueteava solenemente na imundície da pia da cozinha.
Foi a hora do basta. Ele não estava, deixei um bilhete, pedi que ele arranjasse outro lugar. Dei-lhe um tempo para que providenciasse algum canto onde se alojar. Continuei dando comida e dinheiro. Todos os dias perguntava: "já arranjou um lugar?" Claro que as respostas eram sempre negativas, aliás, continuam até hoje. Se voces me pergutarem onde ele está agora, lhes digo: dormindo num colchão, coberto por um guarda sol, pois o telhado da edícula foi consumido pelo fogo. Amanhã continuo a saga da limpeza, porque agora o sono está batendo e eu ando realmente muito cansada.

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